quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Cântico Negro

Relembrando...José Régio in "Cântico Negro"

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Os Ciganos

Os Ciganos é um conto inédito de Sophia de Mello Breyner Andresen localizado no seu espólio na primavera de 2009. Este conto encontrava-se inacabado, tendo Pedro Sousa Tavares, jornalista e neto da escritora, assumido a responsabilidade de continuar uma história sobre o irresistível apelo da liberdade, sobre a atração pelo que está fora dos muros e pela descoberta do outro e suas diferenças.
Ruy é um rapaz que vive numa casa que não lhe parece ser sua. Há muitas regras, muitas rotinas, tantas que nem mesmo o jardim que rodeia a casa consegue ser suficientemente grande para que se sinta livre.
Contudo, num daqueles dias de primavera que caem lentamente ao som do baloiçar das folhas, Ruy é surpreendido pelo rataplã de um tambor que o desafia a saltar o muro do jardim e a percorrer os campos até se abeirar de um acampamento de ciganos. Com eles acaba por ficar e, inspirado pelo espírito indomado de Gela, uma rapariga cigana de olhos cor de avelã, vai descobrir o prazer de sentir o chão debaixo dos pés, enfim, vai experimentar a liberdade pela qual sempre suspirou.

Para miúdos e graúdos: a não perder!

Ao meu filho Gonçalo :)